segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Conan Disse "Faça-se a Luz", e a Luz Se Fez


É impressionante como certos detalhes podem ser importantes na vida de uma pessoa. Aliás, o que pode ser mais importante em uma vida humana do que os detalhes? Não é aqui que se baseia momentos decisivos da psicanálise? Pois bem, sem diletantismos, voltemos aos detalhes.
Enquanto envelheço, fico remontando partes desse quebra-cabeça que sou eu e me pego no flagrante ao perceber que coisas simples, até mesmo ridículas, acabam por ser fundamentais para a minha maneira de agir nos dias de hoje. Estou sendo confuso e prolixo, mas me explico, e para me explicar, obrigo-me a ir direto ao ponto: Conan.
Pois é, admitir que o universo Conan é uma das fatias mais significativas no bolo da minha vida foi difícil, mas não há muito o que fazer. Eu era um pedacinho de gente quando o filme estrelado pelo atual governador da Califórnia (vou me esforçar ao máximo para não ter que escrever o nome do Arnoldinho) passou na televisão. Não importa o que eu pense de tal filme hoje, aquilo mudou para sempre a minha vida.
Destrinchando o minha vida em outras pequenas fatias, desde antes do Conan que eu adoro desenhar. Claro que ainda não encontrei uma criança passiva diante de papel em branco e um punhado de lápis de cor, mas o que eu quero dizer é que ainda um toquinho de gente eu desenhava acima da média da criançada normal da minha idade. Estamos falando quatro anos de idade, talvez. Pois bem, adorava desenhar e tinha companhia, meu irmão mais velho, outro acima da média no traçado.
É muita enrolação para se chegar a um ponto, mas assim é a vida: complexa. O que importa é que após ver o filme do Conan, a nossa rotina mudou por um longo tempo. Ficávamos desenhando cada momento que lembrávamos do filme e, após gastar todo papel e lápis, íamos ao imenso quintal da casa do meu avô, onde reproduzíamos com nossos corpos e a nossa imaginação as lutas e trechos daquela obra cinematográfica que, hoje sei, é de qualidade discutível, mas que eu ainda insisto em discutir.
Soma-se a esse filme uma outra fatia do bolo, as “lendas arthurianas”. É que a minha mãe –guerreira que em nossa infância primordial levou os filhos sem a presença do pai das crianças (embora com ajuda infalível de meus avós e um punhado de tios que estavam por perto) –tinha um belo hábito de em certos momentos ler para nós, antes de dormirmos, contos de fadas, e tínhamos um apreço –meu irmão e eu –pelos contos que remetiam às estórias do Rei Arthur. Vou ser sincero, imagino que Arthur veio antes de Conan, mas não posso garantir, era muito pequeno. Posso sim afirmar que Conan marcou muito mais, porém ambos são responsáveis por um universo de Espada e Magia que não sai da minha existência.
Outras fatias que fazem parte do universo fantástico que marcaram são as estórias de vampiros e monstros em geral (os quais eu amava), os filmes de terror que eu não conseguia deixar de ver apesar de sentir medo, desenhos animados de todos os tipos. Mas peraí? Tudo o que eu coloco como sendo marcante na minha infância é diferente para mim do que foi para outros garotos da minha geração? Em certo ponto sim pela profundidade que atingiu, mas sem dúvida são elementos que estão presentes incluso nas infâncias de minha época até as infâncias de hoje.
Claro que todo garoto brincou com espadas e impressionou-se com o universo da magia. Certamente que os desenhos animados de minha época, como He-Man, Thundercats ou Caverna do Dragão traziam os elementos de espada e magia que marcaram uma época, embora os mesmos elementos apareçam de outras formas nas telinhas de hoje. Mas o fato é que Conan, meu amigo, veio acompanhado de um elemento que fez com que a influência tomasse conta do cotidiano, perdurando por muito mais tempo, Conan tinha uma história em quadrinhos de tiragem mensal chamada A Espada Selvagem de Conan.
Quando minha mãe podia, domingo era o dia oficial de irmos à banca de revistas. A principal era a tradicional Banca do Joel, na praça principal da cidade. Caminhávamos pelo centro da cidade, minha mãe com os dois filhos segurados pelas mãos. Era um momento de extrema alegria. Chegando na banca, era a hora de escolher. Eu sempre saía triste por um lado, pois por ser mais velho (ou seja, por saber se expressar melhor, por ser mais agitado por... sei lá porque) o meu irmão era sempre o que ficava com a revista Conan (não vou dizer A Espada Selvagem toda vez). No início lembro que eu chorava. Queria a mesma revista que ele, nem que fosse para comprar duas iguais. Eu também era louco pelo bárbaro da Ciméria. Mas minha mãe, sábia como todo adulto é, me convencia que tudo era dos dois, que aquilo era só uma formalidade e que era melhor eu escolher outra revista. Triste, eu escolhia outra revista e até era legal, por um lado, pois assim eu variei bastante entre revistas de monstros e Aventura e Ficção, mas eu bem sabia o que realmente queria.
Lembro bem (realmente) de estar sempre justificando para as pessoas que eu realmente gostava daquelas revistas, contando a outros as estórias que eu lia e narrando as aventuras, mas era tudo enganação, bom mesmo era Conan. Nas horas em que meu irmão e eu brigávamos, não tinha essa de ser tudo dos dois, mas com o passar do tempo, fui me acomodando ao fato de sempre ser ele a escolher o bárbaro na banca de revistas. Seja como for, isso foi só a infância, muito ainda está por vir.
Cresci mais um pouco. As revistas do Conan foram se perdendo com o tempo. Novos interesses foram surgindo como a tribo de amigos, as primeiras namoradas, o time de futebol e diversos elementos que fizeram com que, da mudança de Teresina para Curitiba, já não tivesse sobrado sequer um quadrinho do Conan em nossa casa. Naquele momento, nada disso era motivo de tristeza. Os quadrinhos continuaram em minha vida, mas os heróis eram outros, principalmente aqueles do universo Marvel que levavam um X mas não eram Streight Edge. Tinha um bando de amigos que liam a mesma coisa e na adolescência, como se sabe, fazemos ações conjuntas em rituais tribais. Mas eis que um certo hábito se iniciou pelo bairro, um tal de RPG.
Eu não gostava da existência do jogo entre os colegas da rua. Geralmente quando o pessoal estava jogando, não tinha ninguém para jogar bola ou mesmo para conversar. Tínhamos o hábito de, no início da noite, descermos de nossos prédios e ficarmos nas escadas dos prédios ou da rua conversando até os pais começarem a gritar nossos nomes ou percebemos que é tarde demais para ficarmos na rua. O RPG mudou um pouco esse ritual. A história desse jogo está toda relatada por mim em outros alfarrábios, basta dizer, por agora, que ele me chateou no princípio. Reclamava com os amigos, pedia que parassem com aquilo e que voltassem à rua ou o futebol, mas não teve jeito. “Vem ver um jogo, Felipe, só para olhar mesmo”. Se não pode vencê-los... fui. Ainda não foi o suficiente.
Estavam lá, doze, por vezes mais de quinze colegas ao redor da mesa, cada um com uma ficha, dados e livros coloridos. Meu irmão mais velho, com quem na época eu não falava, tinha um personagem que era um bárbaro, chamado Conan. Observei o jogo e achei chato. Alguém tinha faltado e me entregaram a ficha do sujeito. Não sabia o que fazer, mas na hora que os primeiros monstros apareceram, pediram que eu jogasse alguns dados, todos bem diferentes do normal. Joguei e fui embora.
O assunto RPG continuava. Meus amigos de escola todos jogavam, assim como os do bairro. Era questão de tempo que eu entrasse no ritual tribal, e entrei. Primeiro, escrevi uma aventura. Criei algumas coisas e fui em busca de imagens para ilustrar o que havia escrito. Naturalmente cheguei ao que restava de minhas revistas do Conan, ou o que tinha sobrado delas. As imagens de John Buscema alimentaram ainda mais a minha criatividade até que eu desse a história por acabada. Procurei um amigo que narrava RPG, passei a idéia, ele gostou e, juntos, “mestramos”, no que assim eu entrei para o ritual sagrado do grupo de adolescentes. Todos nós e o Conan.
Não saí mais do RPG e o universo de Espada e Magia tomou conta de mim novamente. Meu primeiro personagem: um mago chamado Mitra. Pensei em Crom, mas seria óbvio demais. Já tinha quase 15 anos e não consegui jamais abandonar esse hábito. A referência das minhas narrações nas histórias em quadrinhos eram fortíssimas a ponto de meu amigo Gustavo chamá-las de “Marvels Adventures”. Havia sentido naquilo, embora desde que fora verbalizado pelo meu colega, passei a abandonar (na medida do possível) as HQs como influência e procurar nas fontes literárias, o que me levou, obviamente, a Tolkien.
Mas o tempo passava, o trem andava e o barco navegava. Era o momento de escolher o que queria ser da vida. Foi difícil, eu tinha apenas 17 anos e pensava em ser muitas coisas. Fiz até um teste vocacional, que apontou “múltiplas tendências”, assim o homem do teste me recomendou que fizesse jornalismo, um curso que se faz de tudo um pouco. Tentei, passei, comecei as aulas, mas não me contentei. Algo fervia dentro de mim que não estava sendo saciado pela comunicação, embora eu estivesse gostando de cursar jornalismo. Tomei uma decisão e tentei História na Federal. Passei, algo em mim se acalmou e outra parte de mim ferveu ainda mais. Começaram as aulas de história medieval, vida monástica, oriente antigo e pronto, era aquilo que eu queria. Conan, Tolkien e História. As coisas se encaixavam.
Fui morar na Espanha e lá montei um grupo de RPG. Antes disso, claro, não conhecia ninguém. Passando por uma banca de revista, deparei-me com um quadrinho do Conan e não tive dúvida, comprei. Foi minha primeira compra de HQ na Espanha e isso é significativo. Na seqüência, enchi-me de Groos que, entre pulos de risos, acabei descobrindo que o Sérgio Aragonés se inspirou no Conan para criar “O Errante” e que até mesmo pensou em nomeá-lo Groonan.
Voltei para o Brasil, me formei, comecei a trabalhar e, com os meus primeiros salários, tomei uma decisão: vou começar a minha coleção de Conan. Não teve jeito, todos os dias após o trabalho passava nos sebos da cidade em busca de revistas do Conan. Consegui quase tudo do número um ao 150, mas não quis seguir adiante, pois para cima disso já não havia quase nada de Roy Thomas e John Buscema, com as histórias caindo muito em qualidade. Ainda assim comprei diversas até números acima do número 200, mesmo que até as capas fossem horríveis, longe daquelas do Jusko e demais artistas do começo dos tempos. Na seqüência comprei os filmes Conan o Bárbaro e Conan o Destruidor e descobri que mesmo sendo de qualidade discutível eu adorava aqueles filmes, concluindo, por fim, que minha vida tem uma estreita relação com o bárbaro da Ciméria e que diversas decisões tomadas foram influenciadas por aquelas primeiras letrinhas lidas com muita dificuldade quanto tinha tenra idade. Meu irmão mais velho tinha preguiça de ler os quadros com textos das revistas (que o Roy Thomas adorava colocar aos montes), ele lia apenas os diálogos e pedia a mim que lesse os tais quadros. Hoje, quando narro estórias de RPG ou dou aulas, é tudo muito parecido e não sai da minha cabeça criar as minhas próprias estórias. Mas, como diria o velhinho após os filmes do Conan, “isso é uma outra história”.